Esse maravilhoso e inteligente texto foi escrito pelo meu amigo blogueiro, Renato Hemesath do blog Cine Freud. Cine Freud é um blog especializado também em filmes, mas que faz análises das personagens e das vivências das mesmas nas abordagens cinematográficas. Trata-se de um conteúdo original e consciente, claro, com bases psicanalíticas e de linguagem direta.
É com carinho que deixo aqui:
TUDO SOBRE LINGUAGEM
Falar sobre bebês e suas mães é caso antigo na psicanálise. Não é de hoje que se comenta a célebre frase “antes de amar o seio, o bebê acredita ser este seio”. Popularmente, fala-se também que “mãe é tudo igual, apenas muda-se o endereço”. Os clichês são inesgotáveis, mas façamos um bom uso disso. A temática da família tem se apresentado como um motivo desencadeador de muitos questionamentos. Quem nunca escutou “tudo começa em casa”? Pois bem, a família como um todo é digna de análise, contudo, é sobre uma mãe que pretendo abordar hoje. Uma mãe que não possuia apenas um endereço distinto dos nossos, mas que tinha uma localização específica para o seu desejo.
O filme “Tudo sobre minha mãe” | Todo sobre mi madre – 1999 | nos apresenta o cotidiano de Manuela | Cecilia Roth | e seu filho Esteban | Eloy Azorín |. Em meio a cores de tons fortes, o diretor Pedro Almodóvar retrata alguns momentos valiosos desta pequena família. Façamos linguagem sobre esta mãe: Manuela era enfermeira, tinha um único filho e cozinhava muitíssimo bem. Outras informações sobre ela poderiam ser encontradas no caderno de anotações de Esteban, no qual novas notificações iam sendo inclusas diariamente afim de responder a seguinte indagação: quem é esta mãe? Trata-se aqui de um filho que elaborava uma linguagem enquanto tentativa de pôr em palavras e organizar uma fala autêntica sobre sua mãe. Contudo, algo lhe escapava. Logo nas primeiras falas do filme, observamos que para Esteban havia uma falta em questão: faltava-lhe uma representação da figura paterna. De qual pai me refiro? Não trata-se do pai real enquanto sua presença física e nem sequer do pai imaginário, mas de um pai simbólico, aquele que é a localização do desejo materno, pois Esteban somente sabia que seu pai havia falecido antes mesmo de seu nascimento.
Conforme havíamos acordado, hoje falaremos de mãe e não de pai, porém é preciso fazer uma observação. Esteban pedia a Manuela que lhe contasse sobre a história de seu pai, e ela recusava-lhe apresentar um discurso a respeito dele. Vejam, na dificuldade em elaborar este pai simbólico, Esteban não era capaz de estruturar uma redação que falasse TUDO SOBRE SUA MÃE, era preciso haver um terceiro. Afinal, não saber sobre o pai era não saber sobre a localização do DESEJO DA MÃE que deveria incidir sobre algo externo que não fosse o próprio filho.
No aniversário de Esteban, ele e sua mãe foram assistir a peça de teatro Um bonde chamado desejo estrelada pelas atrizes Huma Rojo | Marisa Paredes | e Nina | Candela Peña |. Esta história tinha um valor muito significativo para Manuela, pois há 20 anos atrás ela havia participado de uma apresentação amadora do mesmo roteiro. Logo, mãe e filho compartilhavam de um mesmo laço. No término da apresentação, Esteban convenceu sua mãe a aguardar a saída das atrizes afim de conseguir um autógrafo de Huma. Ambos aguardavam debaixo de chuva até que Huma e Nina saíram em direção a um táxi, provocando uma grande ansiedade em Esteban. Foi necessário correr em direção aquele carro afim de conseguir o tão sonhado autógrafo. Havia um sonho em questão que findou-se naquele mesmo dia. Ao perseguir aquele táxi, Esteban foi atropelado em um cruzamento e tendo como testemunha do fato, única e exclusivamente, sua mãe.
A morte de Esteban desencadeou não somente uma intensa sensação de vazio e perda, como também transformações na dimensão da linguagem. Se buscarmos compreender do modo mais objetivo possível, entenderíamos que na ausência de um filho uma mulher é uma mulher, e não mãe. Esta compreensão é tida a partir do significado de mãe segundo o dicionário que considera enquanto mãe uma s. f. mulher, que tem um ou mais filhos. Todavia, esta descrição é insuficiente por duas razões: é preciso considerar a condição subjetiva do sujeito, e o significante mãe (assim como qualquer significante) não possui um significado próprio, logo, é esvaziado e pode ter diferentes significações. Como? Um homem, irmão, tio, avô podem ser “mães” no que diz respeito a função de exercer a maternagem. Sendo assim, mesmo após a morte de Esteban, Manuela ainda se considerava mãe, ela reconhecia a perda real do filho, mas ainda se apresentava enquanto sua mãe. Contudo, algo a angustiava. A perda? Não somente, a angústia de Manuela provinha da ordem do Real, segundo Lacan, na qual ela não conseguia converter em palavras a angústia decorrente da morte do filho, ela foi invadida por este Real.
Após estes acontecimentos Manuela decidiu ir ao encontro do pai de Esteban. Durante o percurso ela recordava-se de um fato curioso: 18 anos antes ela havia saído de Barcelona em direção a Madri, nesta situação ela fugiu do pai do menino com este nos braços, agora, ela retornaria a Barcelona ao encontro do pai real, e sem o menino.
Com a morte do filho, parece-nos que Manuela também perdeu o seu papel, como se houvesse um estranhamento quanto a sua identidade de mulher. Contudo, não vamos nos contentar exclusivamente com isto. Tratando-se dos aspectos inconscientes, é de outra perda que o filme se refere: a perda pela representação. Enquanto mãe, Manuela era capaz de ter uma identificação própria, mas, na ausência desta função, ela foi invadida por uma angústia que afirmava a inexistência de um significante que representasse a mulher. Apenas enquanto mulher, sua representação era o vazio e o mudo. Manuela afirmava: nós mulheres fazemos de tudo para não ficarmos sozinhas. O estar só não diz respeito a ausência de um outro enquanto semelhante, mas de um significante que represente a condição de ser mulher.
Vamos recapitular? TODO SOBRE MI MADRE: 1. mãe; 2. cozinheira; 3. atriz; 4. enfermeira; 5. assistente. Vejam, destacamos cinco significantes para dar conta de representar esta mulher. De modo semelhante, era isto que Esteban fazia por meio das anotações em seu caderno, contudo, algo novamente escapava. Não era possível compreender o TODO SOBRE ELA, pois não há este todo, o todo não existe porque há falta, e somente mediante esta é que é possível existir um sujeito desejante. A falta e a incompletude são próprias do indivíduo e a linguagem não consegue expressar uma completude, que por sua vez é inexistente. Deste modo, constatamos que realmente não foi possível conhecer tudo sobre esta madre, porém, conhecemos uma mulher forte que relacionava-se ativamente sobre o seu desejo, e que diante da perda e da ausência de uma significação foi atrás de verdades de sua vida buscando explorar um passado que impactaria o rumo daqueles próximos anos.
Renato Hemesath
Gosto tanto desse filme (aliás, adoro Almodóvar, sei que ele tem sido muito criticado nos últimos tempos, mas isso não muda minha predileção por ele ) ele é complexo , real e apaixonante. A forma como Manuela vê o filho re-criado em diferentes seres é divina.
ResponderExcluir