Segundo entendidos, sem o simbolismo francês não teria havido o modernismo, Joyce, por exemplo. Não se sabe quanto o simbolismo brasileiro foi tributário do seu antecessor francês. Sabe-se, sim, que seu nome maior, João da Cruz e Sousa (1861-1898), teve imensa importância para a literatura brasileira. Sua vida foi uma novela e de final nada feliz. Negro, catarinense, pobre, foi vítima do racismo do seu tempo. Morreu jovem, com 37 anos, e arrastou o grande amor de sua vida, Gaviria, numa trajetória de sofrimentos.
Mas o filme de Sylvio Back - Cruz e Sousa - o Poeta do desterro - não conta essa história, ou pelo menos não a conta diretamente, em linha reta, o que pode significar obstáculo a quem não conheça alguma coisa da sua biografia. Back preferiu ir diretamente à obra, mimetizando nas imagens uma arquitetura poética que se foi modificando com o passar dos anos. Uma estranha evolução, como lembra o cineasta: quanto mais sofrida era a vida material de Cruz e Sousa, mais etérea, abstrata e sonhadora se tornava a sua arte. Um caso típico de sublimação.
Na tela, Cruz e Sousa é vivido pelo ator Kadu Carneiro e sua grande amada, Gaviria, por Maria Ceiça. O filme se desdobra em 34 quadros, naquilo que o diretor chama de "estrofes visuais". Isso quer dizer que os poemas são ditos e encenados. E que a palavra tem tanto valor quanto a imagem, o que convém à poesia e, mais ainda, ao simbolismo.
Já se disse que a boa poesia é aquela que aspira ser dita em voz alta. Isso porque é som e música. No caso de ser boa bem entendido. A transposição para o cinema implica outra operação, na qual a poesia deve ser som e imagem, ao mesmo tempo e sem que esta seja redundante em relação àquele. Uma imagem não pode ser simplesmente ilustrativa. Para se justificar, precisa somar alguma coisa já dada pela informação do som. É o que tenta Sylvio Back, com o acréscimo da tarefa de comentar, ainda que de modo fragmentário, a trajetória de vida do poeta.
Não é fácil nem se pode dizer que o filme alcance seus objetivos o tempo todo. Nem sempre imagem e poema deixam de ser redundantes e o uso de metáforas meio óbvias às vezes chega ao pleonasmo. Por exemplo, para mostrar o "emparedamento social" de um poeta negro, vivendo em um Brasil racista, o cineasta coloca o ator espremido entre muros. Esses deslizes não comprometem inteiramente um projeto que pretende - e consegue - ir além dos limites de uma cinebiografia convencional.
Em outro filme sobre um poeta, Bocage, Djalma Limongi Batista ousou mais e quebrou qualquer perspectiva de biografismo preocupando-se apenas em fundir imagens e texto, de maneira extremamente livre. Não importa comparar um trabalho com o outro. Importante é que ambos - cada qual à sua maneira - souberam apontar para o que de mais importante existe em um artista, a essência de sua obra, do seu legado estético. Uma opção que pede atitude semelhante por parte do espectador.
Para aproveitar toda a riqueza deste Cruz e Sousa - o Poeta do Desterro é preciso que o público faça sua parte e exercite também o olhar e a sensibilidade poética. (Agência Estado)
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