Jornal do Brasil
Gabriel Medeiros
O que significa ser genial no cinema contemporâneo? No caso
específico de dois grandes cineastas do nosso tempo, Quentin Tarantino e Pedro
Almodóvar, a criação de uma obra-prima passa pelo processo de construção de um
sistema de referências (filmes vistos, livros lidos, situações vividas, etc.),
que precisa ser desconstruído, misturado e reinventado para que algo novo possa
nascer de coisas que já foram utilizadas antes. No caso do cineasta espanhol, a
mescla de gêneros, que podem ir do filme noir ao melodrama, da comédia
escrachada à ficção científica, tudo isso em um mesmo filme (ou, até mesmo, em
uma única cena!), sempre foi sua marca registrada. Em A Pele que Habito, que
invade as telas do festival do Rio 2011, temos a oportunidade e o privilégio de
observar a maestria do diretor em controlar essa salada de gêneros, em mais uma
trama de complexidade única, que já nos acostumamos a ver em grandes filmes
como Fale com ela (2002) e Má
educação(2004).
Em 'A pele que habito', por trás da complexa trama,
Almodóvar traz ainda uma complexa discussãoEm 'A pele que habito', por trás da
complexa trama, Almodóvar traz ainda uma complexa discussão.
A história se passa no sugestivo ano de 2012 (seria uma
ironia colocar sua história futurista tão próxima do nosso tempo?), e traz o
impecável Antonio Banderas como o bem-sucedido cirurgião plástico Richard
Legrand que, após a trágica morte de sua esposa (que tem seu corpo
completamente incinerado em um acidente), parte em busca de uma “pele
perfeita”, que poderia tê-la salvado. Sem limites em sua insaciável busca,
Richard é capaz de tudo para tentar reescrever a história e evitar o
inevitável.
A verdade é que qualquer resenha sobre a nova película de
Almodóvar seria redutível em relação à grandiosidade da obra. O diretor vai e
volta no tempo e constrói a história de forma que nossas emoções fiquem sempre
suspensas, na espera do que pode acontecer no momento seguinte. E as
reviravoltas não param em nenhum momento da trama.
Antonio Banderas como o bem-sucedido cirurgião plástico
Richard LegrandAntonio Banderas como o bem-sucedido cirurgião plástico Richard
Legrand.
O diretor francês François Truffaut disse uma vez que o
diretor de cinema era o único que não podia se queixar de nada, pois,
independente do que fizesse, o filme teria a sua marca no final. Almodóvar tem
a consciência disso e sabe a responsabilidade que sua posição traz. Ele tem o controle perfeito sobre o tempo
cinematográfico, sobre o espaço cênico e sobre o que seus atores têm a
oferecer. Com isso, cria momentos de sensibilidade ímpar. A mescla de
sentimentos opostos e de gêneros completamente diferentes em uma mesma cena é a
maneira que Almodóvar tem de mostrar a sua visão sobre a vida, em que tragédia,
comédia e melodrama digno de novela mexicana estão sempre misturados, com
limites muito mal-estabelecidos entre eles.
Em A pele que habito, por trás da complexa trama, Almodóvar
traz ainda uma complexa discussão. Na busca do homem pelo controle sobre a
vida, na tentativa eternamente frustrada de evitar a morte e alcançar a
eternidade, vimos nossas ciências e tecnologias chegarem a níveis extremos de
evolução. E se, nessa busca, tivermos a chance de enfim darmos à luz a esse
“super-homem”? Quais são os limites que estaremos dispostos a ultrapassar e os
sacrifícios que estaremos dispostos a fazer? A última fala do filme pode ser,
talvez, um sopro desesperado para que se veja a humanidade por trás de toda a
“perfeição” técnica. A superficialidade dessa última não pode se sobrepor à
intensidade da primeira.
Com seu ensaio sobre amor, ódio, vingança e busca pelo
inalcançável, Pedro Almodóvar nos brinda com mais uma pérola de seu cinema
único. Um filme imperdível.
Cotação: **** (Excelente)
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