
E na quarta noite chegou o melhor do 38.° festival, até agora. Passemos olimpicamente sobre a primeira sessão de curtas, realizada à tarde, e que foi desastrosa. O número de curtas concorrentes este ano em Gramado passou de 12 para 16. Os quatro exibidos no primeiro dia foram de mal a pior - Um Lance do Acaso, Pinball, Ninjas e Minha Alma É Irmã de Deus. A salvação veio à noite. Foi a do Chile em Gramado 2010. Começou com o documentário Minha Vida Com Carlos, de German Berger, prosseguiu com Não Se Pode Viver Sem Amor, de Jorge Duran, cineasta chileno radicado no Brasil (desde o golpe de 1973).
Minha Vida Com Carlos é sobre esse filho (o diretor do filme) que investiga o assassinato do pai pela ditadura militar. Ele tinha 30 anos quando foi morto, a mesma idade de Berger. A morte brutal teve um efeito devastador na família. Um tio isolou-se no silêncio, outro se exilou, os avós se mataram. A mãe seguiu com seu filho, levando adiante a luta que não era só do marido.
Numa cena, German pergunta à mãe por que ela se apaixonou pelo pai? E ela diz um monte de coisas sobre o caráter de Carlos, sobre a sua crença no comunismo, na luta de ambos por um mundo mais justo, mas conta, principalmente, que ele era muito divertido e a fazia rir. Mais tarde, o filho pergunta de novo - por que ela nunca mais se casou, construiu outra família? A mãe responde que, se o tivesse feito, a vida e a morte de Carlos teriam sido em vão e ela não poderia permitir que isso ocorresse.
Minha Vida Com Carlos pode ser definido como uma egotrip de German Berger. Num certo sentido, o filme lembra um pouco Santiago, de João Moreira Salles. Talvez o mais belo documentário da história do cinema brasileiro. Misturam-se em Minha Vida Com Carlos o público e o privado. Falando de si, da sua família, do trauma produzido pela morte do pai, German Berger fala do Chile. O não dito que pesava sobre aquela família, como sobre o país, vem à tona. A morte do ditador Pinochet encerra uma etapa. Psicanaliticamente, o adeus ao pai carrasco da pátria permite que German reencontre Carlos e possa iniciar, enfim, na lembrança sua vida com ele. Não por acaso, a produtora de Berger chama-se Por las Niñas.
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Para dizer a verdade, o próprio filme mudou, sim. A versão exibida segunda-feira à noite em Gramado foi muito mais luminosa (e bonita). Não Se Pode Viver Sem Amor é um projeto que tem no mínimo dez anos. Teve outros títulos - Gabriel -, passava-se originalmente em São Paulo, agora é no Rio, mas na essência sempre foi uma fábula, segundo o diretor - uma alegoria, mais exatamente -, sobre a família. Não por acaso, começa numa véspera de Natal e se conclui com um epílogo, um ano depois. No começo, Gabriel, o menino sensitivo, com poderes especiais, sai de casa em busca do pai. Ao mesmo tempo, na cidade grande, um jovem lança-se numa espiral de violência para ganhar dinheiro e impressionar uma prostituta. De arma na mão, ele assalta um taxista, cujo pai vai morrer.
A morte faz parte da vida e não é definitiva, segundo a experiência do filme. Há um milagre em Não Se Pode Viver Sem Amor e este elemento sobrenatural tem desconcertado o público e a crítica desde o Recife. Há quem ria - de nervoso? - na cena decisiva. Na verdade, todos os personagens se relacionam e as ligações entre eles são mais enriquecedoras do que o milagre filmado pelo cineasta e do qual ele não abriu mão, nem quando o mesmo recebeu parecer desfavorável em consultorias de roteiro. Os milagres são dois, e o outro é que o menino, procurando o pai, encontra a mãe. Tudo isso você poderá conferir quando Não Se Pode Viver Sem Amor estrear nos cinemas, distribuído pela Pandora Filmes. Seria bom se os mistérios da distribuição e exibição colocassem juntos nos cinemas o filme de Duran e o do diretor chileno que concorre aqui em Gramado. O 38.° festival começou realmente ontem.
Fonte: O Estadão
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